Born in Paris 1979. Living and working in Portugal from early age. Studied classical and Jazz piano. Played in several bands, different genres. Formed the band "Moustache" with his compositions.

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Fabrice Cordeiro
2420-202 Leiria, Portugal
Brass embrace
kARUNA feat. Joana da Oliveira
Waiting for
Portraits
Moustache
PIANO PASSION
"Quarenta dias", Um conto autobiográfico que ninguém vai ler.
Entre sítios, viagens e palcos.
I.
– Estes cabrões não se calam. Falamos depois, ok.
– Ok. Beijo.
Porra, não conheço ninguém neste sítio. Tenho que dizer à Grace que quero parar uns tempos com isto, estou cansado, não paro em parte nenhuma e quero voltar a casa, estar com os meus amigos e com os meus pais. Fico aterrorizado quando penso que posso chegar a casa um dia e eles não estarem lá. Já comia qualquer coisa, devem estar a preparar as sandes, devia dormir, ainda faltam duas horas para chegarmos.
Apesar de adorar andar de avião, penso sempre na possibilidade de isto correr mal. Não consigo deixar de pensar nisso. Não sei como é que a miúda que está a meu lado consegue dormir profundamente. Quando aterrarmos, tenho de ligar ao João, queria aproveitar para estar com ele, já que estou uns dias em Bruxelas. Logo falo com a Grace para ela me orientar. Ela tem sido porreira comigo, é honesta, organizada e tem sido bom trabalhar com ela. Doutra forma não teria trabalho nem dinheiro para me aguentar. Porra! Não faço nada com jeito há semanas, quando chegar ao hotel meto-me num táxi, vou estudar um pouco e começar a compor novamente. Falei com o Bruno ontem ao telefone, tenho saudades dele e da Joana, dos tempos em que tocávamos juntos. Tenho que carregar o ipod quando chegar ao Hotel, e responder ao correio eletrónico, ligar aos meus pais.
II.
A música tem um efeito mágico em mim, principalmente quando está associada a situações e pessoas, a momentos que não se esquecem. Este tema por exemplo faz-me lembrar tempos bons, momentos que vivi numa altura em que dava os meus primeiros toques de composição, o balanço desta música puxa-me para a frente. Diz-me ao ouvido: Tudo vai correr bem. Tudo correu bem. O plano agora é: sair o mais rápido possível do aeroporto, enfiar-me no táxi, ir para o hotel deixar a pouca bagagem que trago comigo e caminhar. Entro no táxi, o taxista é português. Na receção do hotel, o que quero mesmo é sair do hotel, enfiar os headphones nos ouvidos e andar.
III.
O meu quarto é simpático, tem uma cama, o necessário para qualquer pessoa se sentir confortável e ter uma boa noite de sono. Dispo-me, tomo um duche em minutos, visto-me e saio para a rua. Saio do hotel, ligo a Grace, ela apressa-se a dar-me algumas informações acerca do clube onde vou tocar e pergunta-me se não me importo de tocar um pouco com um Saxofonista Holandês que conhece todo o meu trabalho, estará à minha espera para me conhecer logo à noite. Digo-lhe que sim. Continuo a andar para leste, não tem muita importância para mim o tempo, chegar mais ou menos cedo, mais ou menos tarde, quero sentir a cidade. Estamos em janeiro, está frio,há tons castanhos e cinzentos nas ruas, nas roupas e no céu. O clube onde vou tocar hoje é uma espécie de New Morning* de Bruxelas, chama-se “à qua férre Jazz Club”.
Lembro-me de estar um dia numa aula de Práticas de conjunto e dizer à aluna de canto que as letras das canções não me interessavam para nada e que no fundo era o todo, o resultado do som em si que chegava até mim que verdadeiramente me interessava.
São 18h35, entro num hall que me parece ter sido recuperado há pouco tempo. Tem muitos dourados e cortinas vermelhas, umas escadas para um piso superior. Dizem-me que há trinta ou quarenta anos atrás o Clube teria sido um cinema. Entro na Sala principal, do meu lado esquerdo fica o bar com um balcão em pedra enorme. Estou apenas eu e alguns empregados nesta sala. O palco fica mesmo à minha frente, não é muito grande. No palco está um piano, um contrabaixo deitado e uma bateria desmontada.
IV.
Quando volto ao Porto tento sempre visitar o Sr. Victor, do Balsas. Tenho uma grande estima por ele e pela família dele. Em tempos morri de amores pela Alexandra. Vi-a no Balsas pela primeira vez durante um almoço com o meu pai. Ela devia ter uns 17 anos e servia no restaurante para ajudar os pais. Durante meses arranjei pretextos e pretextos para a ver, para a encontrar. Beijei-a pela primeira vez junto à Foz numa das nossas escapadelas demoradas ao fim da tarde. Parecíamos ser feitos um para o outro, a descoberta dos nossos corpos, as sensações que partilhamos, todos os gestos e caricias, estávamos apaixonados. O primeiro beijo… desejava-te tanto, amava-te tanto. Alexandra tinha a pele clara e olhos claros. Tinha um sorriso e boca de apetecer beijar. Tudo era perfeito quando estava com ela. O tempo acabou por nos mostrar que tudo aquilo que sentíamos um pelo outro era passageiro.
V.
Quando me sentei ao piano pensei numa série de coisas, mas como sempre, após dar as primeiras notas tudo desapareceu na minha mente. Fico imerso e toco música após música. Sinto o som de cada nota e acorde, sinto a sala e as pessoas, imprimo em cada nota intenção e verdade. O Holandês chegou por volta das oito. Preparou rapidamente as suas coisas, pegou no saxofone alto e depois de um breve aquecimento pediu-me para que tocasse o tema “Viagem” do meu primeiro disco. Mark estava na Bélgica há dois anos a dar aulas de saxofone e Harmonia no conservatório de Bruxelas. Era alto e magro. Naquele dia fomos procurar um sítio para jantar, caminhamos pelas ruas e conversámos pelo caminho sobre tudo e sobre nada. Contou-me que tinha mulher e uma filha com seis anos. Estavam separados agora devido ao trabalho, mas diz-me que em breve irá para a Holanda de novo, já que ainda não tinha surgido oportunidade de trabalho para ambos no mesmo sítio. Ao jantar disse-me que admirava o meu trabalho e que lhe causava estranheza o facto de nos últimos anos eu tocar quase sempre a solo. Afirmava que a minha música pedia outras formações e outros instrumentos. Mark tinha razão, mas desde muito cedo percebi que este tipo de vida acaba por trazer algum cansaço, sempre pensei que sozinho seria diferente.
VI.
Depois de amanhã vou para Estocolmo, vou procurar Ingrid quando chegar. O concerto de ontem correu bem. O clube não estava cheio, embora estivesse composto. Mark toca muito bem. Há uma simbiose entre os músicos, algo que não se explica, mas que com o tempo e experiência acaba por se adquirir uma ligação que se dá atraves do som. Aprendi com os anos a perceber a linguagem de cada músico, a ouvir e perceber o que ouvem e as respetivas influências. A partir de um determinado momento, de um certo nível, todos passamos anos a fio a ouvir mais ou menos os mesmos músicos. Depois dos concertos, observo o publico, tenho por hábito fazer o agradecimento final. Dirijo-me ao bar, peço uma bebida qualquer e fico-me por ali. Passam por mim algumas pessoas que me cumprimentam, outras esboçam um sorriso e agradecem pelo momento que acabaram de passar. Mark apresenta-me a alguns alunos dele que vieram assistir ao concerto, um deles é pianista, diz-me que não conhecia o meu trabalho e que gostou imenso. Falamos em francês, no meu fraco francês. Falo com algumas pessoas, mas o que quero é sair dali. Quero sair do clube e andar um pouco pela cidade antes de ir para o Hotel. Ainda não liguei ao João e só terei tempo livre amanhã à tarde. Quero comer qualquer coisa, ir para o Hotel, ligar o computador e fazer não sei o quê até ter sono. Despeço-me de Mark e da sua trupe, despeço-me do gerente e da sua trupe e vou tentando chegar à rua, inevitavelmente cruzo-me com gente que quer falar um pouco comigo. Quando chego à rua coloco os headphones e ponho-me a andar. Vejo as horas, são 4h30 da manhã.
VII.
Gosto de música com balanço, musica que me puxe para a frente, principalmente quando é para andar. A esta hora, em muitas das cidades que visito, teria algum receio em andar a pé, mas aqui não. Em termos de segurança, Bruxelas é segura. Fui assaltado imensas vezes em Paris, mas não me ralo com isso, não deixo de sentir a cidade de a observar, e de caminhar pela noite. Preciso disso. Chego ao Hotel muito tarde, tento dormir. Como qualquer coisa. Tento dormir. Ligo a televisão e o computador. Não sei bem se dormi, acordo na cama com o computador ligado ao meu lado. Tenho uma série de janelas abertas com música e filmes. São onze meia, arrasto-me para a casa de banho, lavo a cara, olho o meu rosto no espelho e penso: Tomo um banho, desta vez com mais tempo, numa tentativa de revitalizar o corpo e despertar. Desço, tomo o pequeno-almoço. Cruzo-me com pessoas estranhas no Hotel. A cada nova viagem que faço acontecem coisas interessantes. Por vezes chego ao aeroporto de uma cidade e a primeira coisa que sinto é pertencer e sentir aquele sítio como se sempre estivesse estado ali. Outras vezes nada acontece e a própria visita corre mais ou menos bem e tudo começa outra vez. Hotel, Táxi, aeroporto, aeroporto, Táxi, Hotel, Táxi, Concerto, Táxi e Hotel. Subo novamente ao quarto para ir buscar o número de telefone do João. Quando chego ao quarto cruzo-me com uma jovem, acabou de fazer a minha cama e de arrumar o que havia para arrumar. Diz-me uma série de coisas em francês que eu não percebo à primeira. Digo-lhe que está tudo bem e agradeço.
VIII.
Ligo ao João. Como sempre está ocupadíssimo e não vai ser possível um encontro. Desligo depois de falarmos alguns minutos. Não me importo que o nosso encontro não se realize. Normalmente ligo sempre aos meus amigos e a alguns conhecidos quando estou de passagem. Faço-o muitas vezes apenas por cortesia. Aproveito a tarde para ir a uma livraria que gosto bastante. Tem uma secção de livros de música e partituras muito boa. Aproveito sempre para levar coisas novas para tocar, Almoço e vagueio pelas ruas um pouco mais, passo por uma jovem mulher que me faz lembrar Ingrid. Não quero chegar muito tarde ao Hotel, quero jantar por lá, arrumar a tralha e dormir alguma coisa antes de partir. O meu voo para Estocolmo é às 6h00. Caminho pelas ruas. Auriculares, viajo.
IX.
Conheci Ingrid na minha primeira viagem a Estocolmo. Na altura andava a tocar com um trio. Depois de gravarmos o disco, fizemos uma primeira tourné pela Europa e uma das datas era Estocolmo num festival de jazz que se realiza anualmente. Ingrid fazia parte da organização do festival nessa altura e recebia as bandas. Gostei de Ingrid, era simpática. Tudo aconteceu muito rápido. Estive uma semana em Estocolmo e gostei dela logo no primeiro encontro. Numa noite a seguir a um concerto, passeamos a pé pela cidade. Acabei por ficar em casa dela nessa noite, depois de abraços e beijos longos. O que me agradava nela era a relação simples que se mantinha entre nós. Ao longo destes anos todos, tanto eu como ela gostávamos um do outro e havia uma espécie de acordo entre nós. Independentemente de termos ou não algum relacionamento com outras pessoas, quando nos encontrávamos fazíamos amor. Era assim, sempre. No passado, talvez achasse isto estranho – este tipo de clareza, de acordo. Talvez achasse que Ingrid fosse demasiado fácil e que abria as pernas com a mesma facilidade com que eu toco uma marcha.
Liguei aos meus pais, parece estar tudo bem. Dão-me as recomendações habituais. “Não andes com os pés descalços, dorme e descansa bem; quando é que vens cá passar uns dias, temos saudades tuas, liga à tua irmã”.
Volto ao Hotel com os livros debaixo do braço, organizo a mala. Antes de adormecer passam-me uma série de pensamentos pela cabeça. Lembro-me de tempos passados em Madrid. Saudades de Flor e do Félix.Recordo-os com um carinho especial. Gostava de me recordar de tantos outros que me acarinharam, numa altura em que eu precisei. Lembro-me de uma coisa escrita na casa de banho a marcador, na casa de banho do andar de baixo da Clínica. “The needle and the damage done”.
Acordo numa cama demasiado desfeita. Adormeci com as recordações de Madrid. Acordo, procuro um relógio perto. Devem ser umas dez horas da noite. Encontro um. São onze e um quarto no mostrador do relógio do quarto. Amanhã, ao final da manhã já estarei num outro lugar, num outro quarto de Hotel. Quero comer qualquer coisa leve lá em baixo e voltar a adormecer. Tenho que sair do Hotel por volta das três da manhã. Acabo por adormecer de novo. Lembranças de ti.
X.
– Olá, Mara! Como estás? Tenho saudades tuas…
– Não estou muito bem, tentei de novo, tentei suicidar-me novamente.
– Porquê, Mara o que aconteceu, promete que não vais insistir, por favor! Não voltes a fazer isso!
– Não consigo, não suporto isto, esta dor permanente, sem dormir.
– Procura apoio de novo, vai para a Clínica, pede ajuda por favor. Moira, és uma pessoa maravilhosa, não te quero perder.
Depois desta conversa, nunca mais soube nada de Moira. Conhecia-a numa Clínica Psiquiátrica em Madrid há 12 anos atrás. Eu tinha 19 anos e tinha perdido o meu primeiro amor. Estudava piano como se o mundo fosse acabar e não percebi na altura que me afastava de Alexandra. As discussões eram cada vez mais frequentes, não conseguia gerir bem a minha vida, os meus pensamentos e desejos. Tornou-se um amor desfigurado, tornou-se numa coisa que eu não queria para mim, não queria para ela. Fui magoado, magoei e não deve ser assim, não devia ter sido assim. Perdoa-me Alexandra. Agora consigo, passados todos estes anos, perceber que não estava preparado para amar tanto, para perder tanto. Preparado para esta separação. Passei semanas sem dormir, deixei de comer, raciocinar e comecei a enlouquecer.
XI.
Saí de Lisboa por volta das dez da manhã e apanhei a A1 para voltar para casa. Chovia muito nesse dia, via-se mal a estrada e eu não tinha dormido nada. Pedi dinheiro emprestado ao João para o combustível. Nessa semana tinha sido assassinado um estudante à facada num assalto em Lisboa. Sentia que as coisas não poderiam estar pior. Discuti com o homem das portagens sem razão. Pedi de novo dinheiro a um amigo para almoçar e fui perdendo a cabeça à medida que o tempo passava. Encontrei finalmente o meu pai, a minha irmã apareceu mais tarde. O Psiquiatra, um gajo que achei um palerma logo à partida, diagnosticou-me agitação psico-motora. Mais tarde lembro-me de estar na cama, sedado e ter a visita do Ricardo e da Rita. Fiquei muito feliz. Percebemos que aquilo não estava a funcionar e a minha família lá encontrou um outro Psiquiatra, mais capaz que fez quase a mesma coisa, mas pior. Não conseguia dormir, tinha tantos pensamentos que acabei por atrofiar fisicamente. Num dos internamentos que calhou por volta do Natal, pedi ao médico para me dar alta porque queria estar com a minha família, disse-lhe que me voltava a ver num dia combinado por ambos. Não voltei a pôr lá os pés. Depois de meses de isolamento e de várias hospitalizações, os meus pais e a minha irmã decidiram levar-me para uma Clínica em Madrid. Num ato de esperança e desespero fomos.
A Clínica Lopez Ibor era bem diferente dos hospitais e alas psiquiátricas que até então tinha conhecido. Fiz uma série de testes psicológicos e entrevistas e uma consulta com dois médicos diferentes. Um deles, era descendente da família Lopez Ibor. O consultório parecia um santuário. Tinha pouca luz, apenas o suficiente para dar ao espaço um ambiente acolhedor, tranquilo e quente. O médico confirmou-me o que eu já sabia, o meu passado recente tinha desencadeado um transtorno do humor, conhecido como transtorno bipolar ou doença maníaco-depressiva. Iria fazer um tratamento com Lítio. Nunca me chateei muito com a questão da medicação. Quero estar bem e não voltar a sentir-me Deus ou coisa que o valha. Estive vinte e um dias hospitalizado.
Não se andava de pijama pelos corredores. Tínhamos uma sala de estar e um bar. Acordávamos sempre às 9h00, serviam-nos o pequeno-almoço no quarto, vestíamos roupa e calçado normal. Acabei por conhecer algumas pessoas incríveis. A viagem para Madrid começou cedo, para mim durou uma eternidade. Alguém ansioso, quase em pânico dentro de um carro fechado durante horas. Apetecia-me sair porta fora. Foram todos compreensíveis comigo, tanto que parámos em quase todas as estações de serviço. Cada paragem, um café e um cigarro. Respirar fundo para aguentar os próximos quilómetros. Lembro que até me deixaram fumar dentro do carro de tão aflito que eu estava. Isabel era de Raen, Sul de Espanha. Era fisioterapeuta. Estava acompanhada pela mãe. Eram muito simpáticas, falámos imenso durante aqueles dias. Sentíamo-nos mutuamente apoiados. Flor tinha normalmente depressão, com uma particularidade: desde pequena que a situação piorava na altura do Natal. Estava na Clínica para fazer uns tratamentos que só mais tarde percebi serem eletrochoques. Um dia de manhã, viemos beber um café à rua, ela veio connoscp. Conversei com ela sobre um assunto que tínhamos estado a falar no dia anterior e ela simplesmente não se lembrava. Félix era de Tenerife. Tocava guitarra, tinha um sentido de humor muito peculiar. No corredor dos quartos ele ficava duas portas à minha frente, do lado direito. O corredor era verde e branco.Tínhamos em comum o gosto pela música. O sonho dele era deixar as drogas duras, ter uma tenda com todo o tipo de artigos e andar pelos festivais a vender coisas. Tocar guitarra, ser feliz. Os pais dele estavam a fazer um esforço financeiro enorme para que ele se reabilitasse. Estava na Clínica há oito meses. Percebi, no dia em que entrei no quarto de Félix, o dano e a confusão em que se tinha metido. O quarto estava todo virado de pernas para o ar, completamente personalizado. Afinal, ele estava ali há imenso tempo.
The needle and the damage done
Recordo Mara. Mara era do Escorial, perto de Madrid. Tinha um restaurante no Escorial com a irmã. O pai era espanhol e a mãe era Americana. Nasceu nos Estados Unidos. O nome dela original era Maureen. Vi Mara pela primeira vez no hall da Clínica quando aguardávamos consulta. Era uma pessoa muito calma. Acho que me dei tão bem com ela porque encontrava nela a tranquilidade que eu precisava e procurava. Tenho tantas saudades tuas Mara. Disseste-me tanto.
– Que tatuagem é essa que tens no pulso
– É uma flor…
– Nesse sítio deve doer imenso…
– Não doeu
– Porque é que estás aqui? Estás sempre tão calma, pareces estar bem.
– Não consigo dormir, não durmo nunca. Para te explicar é difícil, é como se fosse eremítica, não sinto nada.
– O que é que te aconteceu para ficares assim?
– Perguntavas pela tatuagem, esta flor era o logótipo do gabinete de arquitectura do meu irmão, suicidou-se.
Mara contou-me a história do irmão e mais tarde a história da vida dela. De forma resumida, e sempre sem grande emoção. Levava para o quarto um livro dos muitos que lia durante a noite. Tinha sido casada alguns anos, divorciou-se, trabalhou numa companhia aérea e na bolsa. Era uma mulher experiente, inteligente, assertiva. Foi uma mulher importante na minha vida. Não se cruzamos muitas vezes com pessoas assim na vida.
Recordo Vanessa.
-Tens que pôr-te de parte – Dizia-me Vanessa
Vanessa era de Raen. No início não era possível chegar perto dela. Estava muito instável e estava sempre com os headphones nos ouvidos a ouvir música tecno. Mais tarde rimos muito juntos e acabei por perceber a pessoa adorável que era.
XI.
Acordei bem-disposto, tomei um banho bem quente, lavei os dentes, vesti-me. Desci no elevador, não se passa nada no hotel a esta hora. Entrego as chaves. Tenho já um táxi à minha espera, falo um pouco com o condutor, ele diz-me que houve um terramoto devastador na Índia e que a coisa está feia por lá. Pede-me desculpa por estar a falar de tragédias, diz que a companhia dele é o rádio e está sempre a ouvir as notícias, ou a ouvir música. Não se preocupa com o bem-estar dos outros mesmo sendo com pessoas que não conhece. Diz que o educaram a amar o próximo, a respeitar os mais novos e os mais velhos, a ter uma estima enorme pela natureza. Chegamos calmamente ao aeroporto, pago e despeço-me dele. Simpatizei com o homem, volto atrás e ofereço-lhe um disco meu que retiro rapidamente da minha mala. Entro no aeroporto. Gosto de estar aqui agora, esta luz, esta vida… Faço o check-in rapidamente. Caminho por ali sem grande rumo ou sentido, decido comer alguma coisa com sal e beber um café. Cruzo-me com uma miúda gorda que arrasta uma mala enorme.
Apetece-me fumar um cigarro, penso inclusive em ir comprar, só desta vez. Deixei há quatro anos, fiz várias interrupções, não vou agora estragar tudo. Vejo de novo a miúda gorda a arrastar-se por ali. Tenho a certeza que para a próxima vai trazer menos carga. Lembro-me momentaneamente das minhas primeiras viagens. Levava sempre bagagem a mais. Agora combino sempre com Grace para me marcar de tempos a tempos uma estadia maior num sítio qualquer para eu poder ter tempo de lavar roupa e comprar o necessário. Sento-me, vejo as horas. Falta uma hora, observo um casal jovem a repousar. Parecem estar estafados, imagino que devem andar nisto há vários dias ou semanas. Gosto deste entusiasmo, querer ver e sentir. Abraçar o mundo como se não fossemos acordar. Queria ser jovem de novo, sonhar de novo, mas o sonho foi este, vivo-o todos os dias, trabalhei e esforcei-me para aquilo que hoje sou e faço. Lembro-me que estou no sítio errado. Procuro indicações que me aproximem do meu destino, de uma porta. A minha porta. Caminho neste espaço organizado com setas e letreiros luminosos. Baixo o volume um pouco, o suficiente para me poder concentrar. Estou ainda meio adormecido, cansado. Vou tentar dormir no avião. Encontro a porta, sento-me de novo num espaço organizado com setas e letreiros. Fico ali, quieto, espero.
XII.
– Olá Grace… tudo bem, desculpa só ligar a esta hora.
– Tudo bem João, não há problema… como correram as coisas por aí?
– Correram bem, foi tranquilo… olha, queria perguntar-te se já resolveste aquela questão dos concertos que vou fazer em Espanha. Sabes que eu não gosto de tocar a solo em festivais ao ar livre… quero, se possível combinar com a malta para tocar em trio novamente. Achas que vai ser possível? Há dinheiro para isso?
– Vou tratar disso, não te preocupes, ok? Tenho tudo pronto ainda esta semana, novas datas e vou ligar à Débora para ver se há condições para fazeres esses concertos como queres. Sei que já deves ter saudades de tocar com a malta toda.
– Obrigado Grace, és incansável…
– Tenho uma boa notícia para ti, ia dizer-te só amanhã, mas digo-te já.
– Diz…
– O teu editor quer um trabalho novo teu, pergunta se tens material novo e se queres gravar no final do Verão. Gostava de lançar o disco em outubro, se não poder ser agora, para a próxima primavera.
– Ok, desculpa Grace falamos mais tarde, ok…é o meu voo… Beijo.
Passo a porta de embarque, as coisas do costume: passa saco, tira saco, corredor, avião, encontrar o lugar, arrumar a mochila, e bon viage. Sento-me junto à janela do lado esquerdo. Uns amontoados de pessoas andam para trás e para frente, chocam entre si tentando arrumar malas e sacos. A ordem começa a ganhar contornos com a ajuda das sempre giras hospedeiras.
– Olá, o meu nome é Alice… posso sentar-me ao teu lado, penso ser este o meu lugar.
– Olá, claro que sim…
A miúda senta-se ao meu lado.
– E então, como te chamas?
– Chamo-me João…
Alice tem o cabelo longo, castanho-escuro, cara redonda. Reparo no ipod cor-de-rosa que traz na mão e que gesticula energeticamente enquanto fala. Fala, fala… fala com tudo, usa as mãos a boca e o corpo todo. Percebi que não iria descansar porra nenhuma. Alice era americana, tinha acabado o liceu e estava a viajar pela Europa há dois meses. Falou-me da irmã, dos primos e dos pais, do gato e do cão. Disse-me que adorava viajar e queria encontrar alguns amigos que conheceu nas redes sociais.
– Sabes, vim com um grupo de colegas meus, mas separámo-nos porque eles quiseram ficar mais tempo em Itália. Outros chatearam-se e acabei por perceber que para isto valer a pena tinha que viajar sozinha.
Alice tinha uma cara muito simpática e a forma como se exprimia era interessante. Não falava com gente tão jovem há muito tempo, o meu papel ali, era escutar e escutar. Ela falava imenso, com uma rapidez e uma vivacidade alucinante. O pai era médico e mãe professora do ensino básico. Tinha uma irmã mais nova, a Judie e o cão chamava-se Einstein. Percebi que Alice estava completamente fascinada com a viagem. Com as pessoas e locais que conhecera.
XIII.
Estou na rua com o meu pai, descemos para ir beber um café horrível a 700 metros dali. O café que se bebe em Portugal é muito melhor. Ali, nada me sabia bem, o tabaco era de uma marca duvidosa. A marca que eu fumava tinha inflacionado ao atravessarmos a fronteira. Nunca disse, amo-te ao meu pai, abracei-o muitas vezes para me desculpar da ingratidão e das muitas palavras ofensivas que lhe disse. Mas nunca lhe disse que o amava. Lembro-me de lhe pedir perdão e de lhe dizer um obrigado chorando convulsivamente e ele respondeu-me:
– Quando eu precisar também vais fazer o mesmo por mim.
Um dia perguntei-lhe de forma simples, se tinha morto alguém em Angola. Disse-me que não, atirava sempre para o céu quando andavam no mato e o uso da arma era desnecessário. Percebi com o tempo que aguentamos muito mais do que podemos imaginar e que a doença pode ser uma espécie de desafio que nos muda para sempre. Conheci pessoas incríveis. Lembro-os com um sorriso, com admiração e gratidão.
No nosso quarto deitam-se corpos nus e exaustos. Finjo adormecer.
– Alice, desculpa, mas vou descansar um pouco ok?
Quero ouvir um pouco de música, vamos ter tempo para conversar mais tarde. Encosto-me bem à minha cadeira, entretanto vamos descolar e quero sentir, como sempre este momento. O aumento de velocidade e a descolagem do avião são, sentidos sempre com a mesma admiração por mim. Adoro esta parte, este balanço, esta força. Eu e Alice sorrimos quando estamos finalmente no ar. Colocamos os headphones e como combinado deixa-me relaxar um pouco, fecho os olhos, sinto-me bem. Durmo uns vinte minutos, o suficiente para voltar a mim com mais confiança. Alice ao meu lado escreve num pequeno livro de linhas. Reparo que tem muitos rabiscos, notas e até ilustrações. Imagino que seja uma espécie de diário. O ipod cor-de-rosa desperta-me alguma curiosidade, pergunto-me que música terá o pequeno aparelho.
O meu sonho de criança estava, na maioria das vezes, relacionado com a natureza e com os animais. Deitava-me e imaginava ter uma ovelha e um carneiro. Mais tarde eles tinham bebés, que cresciam e por sua vez tinham bebés que tinham bebés. A família animal multiplicava-se e para além destes tinha também porcos, vacas e cavalos, que tinham bebés que tinham bebés. Lembro-me deste sonho, deste pensamento desde muito jovem. Talvez fosse por influência dos meus avós maternos que viviam no campo, tinham animais e terrenos de cultivo, viviam deste milagre da multiplicação. Imagino que me tenha influenciado para sempre, ter vontade de ser bem-sucedido, de criar. Tal como Alice, vivi sempre entre um Mundo mais ou menos bom e um mundo só meu, um Mundo de sonho e fantasia. Ouço o som vindo dos headphones de Alice, é inevitável, ela tem o som altíssimo e parece-me estar a ouvir transe. Tiro uma revista, mas nada me interessa ler agora, vejo apenas as imagens rapidamente. Escrevi uma carta a M. Depois de ler a carta coloquei o pedaço de papel no lixo. Achei tudo aquilo um disparate. A única frase de jeito que consegui escrever e que resumia o meu amor por ela tinha cinco palavras. Alice adormeceu, acorda com um espasmo repentino.
– Onde estamos!? Tive um sonho horrível
– Tem calma, está tudo bem…
– Desculpa…
– Não te preocupes…
– Obrigado, assustei-me, mas estou bem agora.
Lembro-me não sei porquê do tema hallelujah. Já o ouvi cantado por tantos cantores e ao longo dos anos outros tantos fazem novas versões dele. É realmente uma música muito bonita. Nunca o toquei apesar de o saber muito bem na minha cabeça. Talvez faça alguma coisa também que seja tocada eternamente por outros no futuro. Tenho temas muito bons, sei disso, mas também sei que a música que faço não chega a tanta gente como este tipo de música. As canções têm uma projecção diferente. Com a idade de Alice ouvia Nirvana, Metallica, Guns & Roses, Red Hot Chilly Peppers, Pearl Jam, entre outros…ouvia também por influência da minha irmã, U2, REM, Resistência, Xutos e Rui Veloso. Houve mais tarde uma fase de música bastante pesada, e uma fase de release com música Clássica e logo a seguir a grande paixão pelo Jazz. Estavas ali, o teu nome escrito à minha frente. Uma conversa possível à distância de um clique. Não o fiz, não o quero fazer, não quero ter esta conversa, seria um desperdício de tempo, uma lembrança de ti que não quero ter. Observo o movimento aqui no corredor do avião. Tudo calmo, consegue-se sentir o silêncio e ao mesmo tempo um leve ruído do deslocar do avião pelo ar. Para não variar volta o medo, o pensamento de que aquele enorme monte de metal recheado de gente possa cair.
Fujo a este pensamento lembrando-me de Ingrid que estará à minha espera quando chegar a terra. Tentei falar com ela, mas não consegui, deixei-lhe uma mensagem de voz e uma mensagem por e-mail ao sair de Bruxelas. Alice está toda torta no seu lugar com a cara quase encostada ao meu ombro, dorme. Uma vez mais observo-a dormindo. Tem uma cara muito bonita, simpática. É engraçado como a vejo de outra forma agora, depois de saber um pouco da sua história. Lá em baixo era apenas a miúda gorda, agora é Alice. Uma jovem americana, cheia de sonhos e vontade de se descobrir. Será médica como o pai daqui a uns anos.
Quando comecei a compor, dava o nome de pessoas às músicas que fazia. Naquele momento fiquei com uma enorme vontade de dar o nome de Alice a uma música minha. Aquele encontro deu-me um pouco de alento, esperança e levou-me para um sítio onde sou feliz, sempre. Não sentia isto há muito tempo, estimulado para compor e fazer de novo coisas novas. O facto de estar em breve com Ingrid e ter falado com Grace tinha sido também importante. Gravar um disco novo e a possibilidade de o fazer com outros músicos, é mágica. Desta vez Alice acordou lentamente, parecia um gato a esticar-se pelo pouco espaço existente ali. Olha para mim e sorri.
Devemos estar a chegar, quero terminar esta viagem com algo de muito especial, coloco os headphones e procuro na longa lista de álbuns, Kind of Blue de Miles Davis. Fecho os olhos, viajo. Penso no que me aconteceu recentemente, no privilégio que é viver, sinto mesmo que a verdadeira fonte de inspiração são as pessoas, a vida e o amor.
Acontece a descida finalmente. Corre tudo bem. Durante a aterragem Alice dá-me a mão. Quando chego a um sítio, gosto de sentir o cheiro. É sempre diferente. Por vezes, quando chego a um sítio novo, esse sítio é tão parecido com outros sítios em que já estive, que parece que estou em casa. Outras vezes, mesmo sem nunca lá ter estado, nem sequer parecer semelhante a algum outro sítio onde tenha estado, parecia já lá ter estado.
Os aeroportos onde estive até agora não eram muito grandes, parecem muito semelhantes. Quando se sai, têm em comum o tráfego a mais, barulho e confusão. É diferente chegar de noite ou de dia. Deprimente, não há muita luz é sempre cinzento. No aeroporto, nos tempos de espera gosto de reparar sobretudo em crianças. São sempre mais espontâneas. Converso um pouco mais com Alice. Caminhamos até junto da passadeira que nos traz gentilmente as nossas malas. Alice reconhece ao fundo a sua super-mala, sorrio e despeço-me dela. Ela retribui com um enérgico abraço. Obrigado Alice.
XIV.
– Olá Ingrid!
– Como estás João!? A viagem correu bem?
– Sim, muito bem, obrigado.
– Tinha saudades tuas.
– Eu também Ingrid, pensei muito em ti
Pensei muitas vezes em ficar contigo, não sair perto de ti. Talvez decida ficar, um dia.
– Queres dormir um pouco, tomar banho?
– Não. Quero-te a ti…
Ingrid veste uma camisola verde, justa ao corpo e uma saia preta, collans pretos que me apresso a tirar-lhe do corpo. Encontramo-nos na cama, sempre. Resolvemos tudo aqui, neste sítio longínquo onde nos escondemos, nos perdemos, nos amamos. Quero estar contigo aqui para sempre. Longe de obrigações e de gestos forçados. Aqui sinto-me bem, sinto-me vivo. Sei que te amo. Sair daqui… Nunca me disseste para ficar. Foste sempre compreensiva comigo. Ingrid sai para ir trabalhar. Tomo um banho mais ou menos demorado. Observo os objectos de casa, da casa de banho, coisas mais ou menos pessoais. Sinto a casa, o espaço envolvente. Gosto da luz e das cores do apartamento. Não é muito grande, mas é amplo. Ingrid vive neste apartamento há dois anos. Sempre partilhou casa com outras pessoas, desde o tempo de estudante. Agora trabalhava para um grupo de empresas, organizando eventos e actividades semanais para os colaboradores e familiares do grupo.
Saio à rua. Sinto-te de novo, o teu cheiro fresco de uma cidade sempre aguardada. Respiro-te profundamente pedaço de Estocolmo, pedaço de mim. Vou tocar daqui a dois dias, tinha tempo para passear desta vez. Talvez pudesse alugar um carro e conduzir um pouco. Não conduzo há imenso tempo. Gosto da ideia de guiar novamente. Sentir o carro, sentir a viagem e acelerar um pouco. Ando um quarteirão. Sento-me num bar-restaurante, faço o pedido e como um bife com batatas fritas. Bebo uma cola zero e um café.
Sinto o cheiro a tabaco de um cliente. Quero também fumar mais uma vez e acreditar ou não pensar que morrerei lentamente com dor. Observo um casal jovem que está à minha frente. Parecem gostar um do outro. Ela, está sem dúvida caídinha por ele. Reparo como os corpos deles se balançam um para o outro. Uma pequena e deliciosa batalha de sedução. Passa por mim uma miúda giríssima com um casaco polar bege e umas calças pretas, justas às pernas, marcando a forma perfeita do seu corpo. Senta-se ao balcão, fuma um cigarro sossegada. O empregado do bar, atrás de um balcão longo, tira cafés desenfreadamente, dando a urgência necessária aos pedidos dos clientes. Ao sair, uma despedida breve, olhares entre mim, o velho, a miúda gira e o casal jovem. Coloco os headphones, numa viagem por ruas.
Carl Michael Bellman nasceu em Estocolmo em 1740, foi um poeta e compositor sueco. Foi uma importante figura na música tradicional sueca. Combinava as palavras e o ritmo como ninguém. Interessei-me pelo seu trabalho numa das minhas visitas à Suécia. Estava num bar com alguns amigos e com Ingrid. Estava uma cantora folk a cantar à capela quando entrámos. Tocava guitarra e cantava lindamente, mesmo não percebendo uma palavra, a sua voz e musicalidade tinham um efeito hipnótico, tranquilizante. Chamava-se Elina. Elina tocava guitarra desde muito cedo. Começou por colocar os seus vídeos e canções no youtube, tinha milhares de visualizações e assim acabaram por surgir convites para tocar um pouco por todo o lado. O timbre dela é muito especial, tem uma voz doce e transparente. Lembrava-me por vezes aquela voz dos meus discos de criança que ouvia horas a fio. Juntava-me com a minha irmã, sentados no chão junto ao gira-discos e ficávamos ali, horas a ouvir as nossas canções e histórias favoritas.
Quando terminou o concerto, fui falar com Elina e perguntei-lhe os nomes dos compositores que ela acabara de tocar. Acabei por me apaixonar por esta música, este estado de alma, por Carl Michael Bellman e sua história. Apanho o metro, quero sair de Bromma e andar um pouco à beira do lago Mälaren. Talvez apanhe uma barca e visite de novo Södermalm. Gosto de ir lá, sentir e imaginar o que seria a vida por lá no século XVIII. Imagino Carl Michael Bellman e os seus amigos boémios por aquelas ruas degradadas, fugindo dos credores, espalhando panfletos com poemas, histórias e canções.
A viagem é rápida e confortável. Adoro viajar, seja de metro, carro, comboio. Cruzar-me com pessoas tão diferentes, tantas histórias diferentes, tantas vidas, sonhos, ambições e desejos. Caminho em direcção ao lago. Paro uns instantes para sentir tudo o que está à minha volta. Edifícios imponentes, muitos espaços verdes e uma mancha azul enorme que me traz lembranças. Lembranças do passado, de uma outra viagem, de outras viagens, visitas a Estocolmo.
Sento-me um pouco num banco junto ao lago. O som ali tranquiliza-me. Ouço apenas o som de algumas pessoas que passam, murmúrios e conversas numa língua que ainda não aprendi. Concentro-me sobretudo no som do vento e da água. O céu está limpo e recebo do sol o necessário para me sentir bem ali, quente. Tenho que ligar a Grace. Tenho que falar com Ingrid daqui a pouco para combinarmos o nosso jantar. Tenho de ligar aos meus pais, deve dar para estar com eles em breve. É assim, ou pelo menos é esta uma das formas que encontro para organizar os pensamentos e sentimentos. Ali, sentado respiro. Por vezes fecho os olhos e sinto o vazio, o vento fresco na cara e nas mãos. O tempo para e a música surge em mim. Um som divino que reconheço de outras contemplações. Tenho uma súbita vontade de tocar piano. Levanto-me, caminho mais um pouco junto ao lago e sigo por uma rua que reconheço, que de alguma forma me levará a uma zona com livrarias e uma loja de instrumentos musicais a que decido ir.
Entro, há um piano, vários pianos, mesmo a pedirem para serem tocados. Sento-me naquele que me parece ser o melhor depois de pedir licença ao empregado da loja. Toco aquele som do lago do vento. Sigo aquilo que a minha mente me dá e diz, os dedos seguem por ali em ré menor. Vinte minutos são suficientes para gozar de um estado de alma que acredito ser um privilégio. Caminho pela rua, a luz começa a desaparecer. Desaparece muito cedo nesta altura do ano. Lembro-me momentaneamente de Rita, gostava de a rever e falar com ela. Como ela me entende… sempre fomos chegados, por mais tempo que estejamos separados a nossa ligação não sofre com isso. Ao telefone ou pessoalmente há sempre assunto. Deve ser normal, somos família, estamos ligados por esse laço gigantesco que é a família. E como eu te adoro, morreria por dentro se te acontecesse algo. Entro num túnel. Viajo no escuro, quase preciso das mãos para me orientar. Passo por pessoas, muitas pessoas. Onde estás? Procurei-te tantas vezes e disseste tantas vezes que não. Estou aqui para ti, dizia eu, pensava eu. Pensava em ti sempre naqueles dias, durante dias, semanas inteiras. Uma após a outra. Quero-te, adoro-te.
Por mais combinações, probabilidades e possibilidades acabamos sempre por repetir as mesmas coisas . A coisa simples, que funciona. Já não tenho grandes ilusões, não sou a porra dum cientista, não descubro nada de nada. Uma mulher fuma um cigarro enquanto subtilmente seduz o colega de trabalho magro.
XV.
– Olá, como estás?
– Não muito bem…
– Que se passa?
– Voltei a acordar de novo em pânico…. Durmo mal, acordo a chorar.
-Estou farta, não percebo o que se passa comigo. Já tentei tanto, tanta coisa. Estou tão triste…
– Sabes, já me senti assim…na altura em que nos conhecemos. Talvez um pouco antes. Acho que tens tudo para ficar bem, é uma fase que vai passar, tenta descansar e ocupar-te com coisas que gostas.
– Acho que conheci uma pessoa que não me está a fazer bem, vou ter de me afastar. Tenho de ir, beijo grande.
– Beijo. Estou contigo, sempre. Liga-me sempre que precisares.
Porra, está frio. Encontro-me com Ingrid num beco que tem meia dúzia de restaurantes. Quanto tempo resta, quanto tempo serei torturado por ti. Jantamos. O restaurante é agradavelmente normal. Pequeno. Ingrid fala-me dos seus mais recentes projetos, do tempo que passou por nós, entre nós. Diz-me que estou mais magro, que estou bonito, que me quer ouvir de novo. É curioso, funcionamos bem os dois, sempre que aqui venho, tenho vontade de ficar. Ficar contigo, mas não posso. Perdoa-me. Amanhã voltarás a ouvir-me tocar e o tempo será mais curto. Vamos estar mais perto de nos despedirmos mais uma vez. Quando tocar, pensarei em ti Ingrid.
Ligo aos meus pais, digo que está tudo bem. Estarei em breve com eles. Grace disse-me que talvez fosse possível ir a casa por causa de um provável cancelamento de concertos na Alemanha.
– Sim, está tudo bem, estou aí para a semana em princípio.
– Liga, para saber a que horas te vou buscar.
– Não é preciso, vou para o Porto e logo se vê.
– A mamã quer falar contigo.
– Olá João, tens dormido bem? Tens comido como deve ser?
– Sim, não te preocupes.
– E os concertos, como estão a correr?
– Tudo bem, tem sido tudo normal… depois falamos quando estiver aí…Beijo
– Beijo
Dormimos juntos de novo, que bom estar aqui contigo. Partilhar contigo tudo. Sentir o teu abraço de novo, o teu carinho. Ingrid sai cedo, sempre cedo. Fico na cama dela algumas horas, como umas torradas e café com leite calmamente. Ligo o portátil e escrevo algumas ideias que me acompanham há meses. Não tenho tido vontade de as escrever, por preguiça talvez, ou simplesmente por não estar com vontade para o fazer. Escrevo os temas, melodias e as cifras. Escrevo algumas ideias que já tenho experimentado em concertos, que me parecem funcionar muito bem. Faço mais café, junto a uma bancada encontro um maço de cigarros de Ingrid. Sem pensar muito, pego num cigarro e fumo. Leio um pouco na sala, a luz entra pelas grandes janelas que se aproximam de mim. Penso como estará a minha casa no Porto.O reencontro com o meu companheiro, o piano. O meu primeiro e único piano, o piano que o meu pai me deu, onde estudei e segredei as notas da minha alma. As primeiras notas e sons. O piano vertical junto à janela da pequena sala do apartamento pequeno da Rua das Flores nº47- 2º esquerdo. Imagino-me a envelhecer numa casa num pequeno monte. Uma casa construída com pedra e madeira. O sítio onde me encontro e me imagino é uma sala ampla com grandes vidraças, onde a luz entra em abundância pela manhã. Na sala, pouca coisa, um sofá robusto, uma estante com CD`s e livros. Num lugar privilegiado, quase central, um piano de cauda Bosendorfer. Imagino este lugar e esta casa muitas vezes. Imagino um companheiro, um pastor alemão. Ele brinca, faz-me companhia. Lá fora uma pequena vedação, algumas árvores ao longe, apenas uma perto de mim, um velho sobreiro. Uma varanda espaçosa com bancos e cadeiras de madeira onde me deito em dias de calor e olho o verde dos campos, a beleza e a mudança da natureza. Ali tenho tempo, há tempo para olhar e perceber e sentir com tudo o que nós temos. Os pássaros e insectos, toda uma ordem que resiste e quer permanecer, viver, sobreviver.
Imagino envelhecer aqui nesta casa, no campo. Imagino, continuar a tocar neste piano, gravar e compor. Continuar a trabalhar. Imagino que um dia estarei velho, mas sei que não deixarei de amar esta arte. Quando for velho quero falar com os meus amigos, dizer-lhes tudo o que me fascina, tudo o que me faz ser eu. Quando for velho, espero não estar magoado com nada. Quando for velho espero que a nuvem que tu foste se desfaça e desapareça. Quando for velho quero estar tranquilo e fazer a melhor música de sempre e ser recordado pela pior música de sempre. Quando for velho, quero que alguém me leve a ver o mar uma última vez. Deus pode levar-me depois disso.
Como uma maçã, preparo a roupa para logo à noite e saio. Volto à rua, à cidade. Pessoas aos atropelos junto à paragem do autocarro. Passo atrás, passo à frente, lá consigo entrar depois de mostrar o bilhete para o transporte. Sento-me na parte de trás do autocarro junto à janela. Quero ir ao Vasa Museum, um museu dedicado ao Vasa, um navio de guerra sueco construído e naufragado em 1628.
Lembro-me desta frase. Uma ex-namorada de um amigo meu falou-me um pouco sobre ela. O gajo era guitarrista de uma banda de garagem, tinha uma fender stratocaster vermelha. A ex-namorada tinha escrito uma letra para uma música dele com esta frase. “Friends come and go”. Na altura não percebi muito bem o significado daquilo. Custava-me a tradução e o significado literal da coisa. Existem na minha cabeça uma data de frases que nunca percebi muito bem. Esta é uma delas.
Hoje estive com o Sr. Vítor. Gosto muito dele. Lembro-me da nossa ida ao casino. Depois do jantar fomos andar um pouco. Ele falou-me de si, da família, da mulher e do acidente que lhe dificultava a vida sempre. Apesar de ter já alguma idade, tinha ficado com algum medo. Medo de cair, medo de alguns sons repentinos. O Sr. Vítor era um homem bom. Qualquer injustiça o colocava num estado de fúria por sentir a vida tão intensamente. Hoje saí de casa dos meus pais às 7h30 para andar com os headphones a debitar um som que me abria o coração para um novo dia que se revela majestoso. Tomei banho às 6h10, tomei o pequeno almoço. De repente o piano misturado com esta luz leva-me a imaginar tudo, nada, sereno, profundo.
Sigo um trilho que não vai dar a lado nenhum, apenas a um sítio com uma clareira onde normalmente se fazem alongamentos antecedidos de uma corrida ou outro exercício qualquer.
XVI.
A vidente disse-me que eu sou uma alma velha.
Quando volto a Portugal, ao Porto, caminho, a pé ou ando de carro e sinto esta cidade de uma forma que me dá quase vontade de chorar desalmadamente. Como se estivesse em frente a uma obra de arte adorada. Estive com os meus pais, não esperavam por mim antes do Natal. Tivemos um jantar de família com a minha irmã o seu namorado, e os meus tios.
Se me perguntassem quais os meus grupos preferidos, os meus pianistas favoritos ou qualquer outra coisa em que seja necessário escolher e deixar de fora outros igualmente bons ou aqueles que desconheço, preferia não escolher nada. A primeira vez que entrei num estúdio profissional, detestei a gravação que fiz. Agora gravo normalmente em casa. A minha primeira professora de piano contava-me de vez em quando algumas histórias sobre música, essencialmente sobre pianistas.
Hoje é segunda-feira vou almoçar com o Nuno, um amigo dos tempos de Liceu. Até sexta-feira tenho uma data de coisas a fazer e resolver. Sinto-me um pouco triste. Apesar de ter estado com a minha família e estar de novo no Porto, fico sempre assim, meio angustiado. Não sei muito bem porquê. Talvez sejam as memórias e as emoções fortíssimas que me causa. Passei aqui metade da minha vida e a outra metade tenho viajado. Toquei em todo o tipo de ocasiões até chegar ao tipo de concerto que dou hoje. Toquei em várias formações e diferentes tipos de música. Ontem deram-me um flyer na Rua, a caminho de casa, depois de ter ido dar uma volta a pé. Trata-se de uma performance que irá acontecer amanhã por volta das 19h numa livraria que gosto muito. Encontrei na Livraria um amigo meu, o Jorge.
– Olá, tudo bem?
-Olá, tudo bem contigo!?
Por vezes penso nisto: estar numa posição difícil em que vou passando de lugar em lugar, de um enredo simples a um mais complexo, sempre. De que tudo fica maior e multiplicado, tais como, mágoas e alegrias. Tudo o que possa fazer pouco peso tem ou terá influência, porque finalmente antes de morrer estarei sozinho, com medo, a suplicar e a chamar pela minha mãe.
O Sr. Carlos, o dono de um dos cafés lá da terra disse-me uma vez:
– Opa! Tu tens de te juntar a gajos melhores do que tu, para cresceres também. Se te juntares a músicos fracos não sais da cepa torta.
A Rita ligou-me ontem. Continua a trabalhar em Lisboa. Diz-me para eu passar por lá quando me for embora de novo. Digo-lhe que sim. Podemos ir ao Pavilhão Chinês beber um copo. De qualquer forma vou ter de ficar uns dois dias em Lisboa, será lá que apanho o próximo voo para Itália. Tenho de falar com Grace, não tenho nada para mostrar ao editor e duvido que faça alguma coisa de jeito em breve.
Vou para Itália, depois tenho concertos em Berlim e outro na Suíça, onde vou encontrar alguns amigos meus que trabalham no Caphé de Làncienne Garre. Falei com os meus pais hoje de manhã e disse-lhes que ia aproveitar para fazer umas análises e que precisava de as mostrar a um médico. Vou ficar em Portugal até ter o resultado e de falar com o médico.
– Há quanto tempo não vem ao médico?
– Dois anos ou três anos, não me recordo.
– Está tudo bem consigo.
– Olá. Como estás.
– Bem, e tu como estás?
– Estou ótima. Com muito trabalho, como sempre.
– Estive com a tua mãe e o teu pai, passei por casa deles quando vinha para baixo. E o Tomás?
– Está bem, estamos a viver juntos finalmente.
-Adorei ver-te e falar contigo.
Do Pavilhão Chinês ao Hotel, decido fazer tudo a pé, apesar de ser um pouco longe. Acabou de chover e por acaso, desta vez não coloco os headphones nas orelhas para ouvir música enquanto estou a andar. Quero sentir um pouco o som desta cidade maravilhosa que é Lisboa. Chego ao Hotel, arrumo uma data de tralha que vou precisar durante a viagem. O meu voo era às sete e quarenta, mas pedi-lhe para fazer escala em Paris.
A viagem corre bem.
Coloco a mão no bolso, procurando um maço de cigarros que Ingrid me deu com um último cigarro e que me pediu de o acender e fumar em Paris. Foi o que fiz. Estou a colocar as malas no tapete rolante quando sinto um toque leve nas costas. Uma voz familiar, de mulher jovem.
– Alice! Como estás?
– Estou bem e tu?
– Vou para Itália tocar. Vais para onde?
– Itália também. Termino lá a minha visita à linda e velhinha Europa.
– Que bom encontrar-te de novo.
João e Alice vão no mesmo avião para Itália. Encontram-se duas ou três vezes para tomar café e almoçar. Alice assiste a um dos concertos que João dá e fica maravilhada com o seu trabalho, principalmente porque ele toca de improviso uma música de Nirvana que ela gosta muito.
João vai encontrar-se de novo com M. quando voltar a Portugal e a procurar. Na suíça tudo corre bem. João dá dois concertos e regressa a casa na Rua das Flores, encontra o Sr. Vítor a quem dá um abraço.
Depois de conversar com M. a quem disse em cinco palavras o que sentia por ela. M. respondeu que gostava de uma outra pessoa e que nada iria alterar isso. João saiu daquele lugar com uma tristeza muito grande, mas ficou de algum modo aliviado pela franqueza de M., nunca mais voltou aquele lugar. João continuou a viajar e a dar concertos.